terça-feira, 9 de junho de 2020

A república - 06/06/2020

Não tinha mais para onde ir e precisava alugar logo um espaço em algum pensionato qualquer. Como tinha pouco dinheiro não tive muitas opções de escolha e acabei procurando um lugar que concentrasse um custo menor com um maior número de benefícios. Achei um anúncio e fui dar uma olhada. A casa era interessante, se tratava de uma casa grande, com vários quartos, espaço de convívio central e uma segunda casa ou casa dos fundos, separada por dois longos corredores laterais, era como se fosse um oito (8), ou um H, levei alguns itens pessoais, algumas malas, um pouco desgastante o trajeto, as malas todas pesadas, fui direto para o pequeno quarto dos fundos, que não tinha uma chave. Quem me recebeu foi um rapaz que parecia bem legal a primeira vista, e haviam outros moradores que acabaria por conhecer ao longo do tempo ali. Era uma república aberta as diferenças e sem muitos julgamentos. Logo de início me identifiquei com o Bruno, ele era alto e até um pouco padronizado, porte atlético, boa aparência. Com o passar dos dias chegou um novo morador, e assim como eu, este novo morador preferia não socializar muito e eu não encontrava muito com ele, porque afinal meu quarto ficava na casa dos fundos, então os encontros eram esporádicos na sala de convivência central, mas muitas vezes eu permanecia no meu quarto de qualquer maneira. Esse novo morador a qual vou chamar de Marcos em poucos dias mudou de comportamento e começou a trazer alguns amigos para o convívio geral, tocava músicas, muita bebida, algumas festas. A maior parte das pessoas que frequentavam eram gays ou bissexuais, acho que apenas dois moradores da república eram heterossexuais e uma única mulher grávida morou também por um tempo nessa casa, mas coisa de três dias depois de minha mudança eles se mudaram. Com o passar dos dias Marcos fez mais uma das costumeiras festas e depois disso duas pessoas ficaram morando no quarto dele ou pelo menos não pareciam ir embora. Uma delas ele apresentou como o namorado dele e a outra era um amigo. O namorado dele era um pouco calado, mas muito atraente, tinha alguma fixação com os outros homens da casa e me chamava sempre pra um cigarro e conversar. Vou chama-lo de Johnny.  O amigo era mais afeminado, mas ainda assim um homem, com um penteado mais chamativo e toda aquela postura mais territorial, fixando sempre a atenção para si, falava alto, realmente agia como um pavão, apesar de se dizer mais próximo das mulheres ou tentar alguma amizade com as mulheres da casa ou amigas dos outros rapazes, o nome dele era Lu. Tudo isso aconteceu em menos de um mês, duas semanas, foi uma questão de dias. Havia um cachorro nos fundos, que era bem grande e pertencia ao pessoal que era responsável pelas contas dessa República. Esse cachorro era bem bonzinho, mas sempre parecia meio frio, também não me lembro muito bem da ração, mas era um pote que sempre estava vazio, as vezes eu colocava alguma coisa ou ele lambia algo no chão, mas não era um cachorro com calor. Alguns objetos da casa começaram a desaparecer, mas nada de importante, até que um dia cheguei no meu quarto e encontrei o namorado do Marcos dormindo lá mesmo, na minha cama. Fui falar com ele e ele disse que havia brigado com o Marcos e que agora o Marcos estava na Sala com uma faca, disse que eles tinham bebido muito e acabaram discutindo. Pedi que ele saísse, mas o Johnny pediu para ficar ali. Fui na sala central da casa da frente entender a situação, um pouco contrariado por ter sido envolvido em problemas desnecessários, mas chegando lá não encontrei o Marcos. Lu apareceu falando que eu tinha que ir embora e me deu um tapa muito forte. Começou a me ameaçar, dizer que ia chamar a polícia, que sabia o que eu tinha feito e eram acusações sem sentido, mas ele estava realmente muito irritado comigo. Tenho pra mim que ele era apaixonado pelo Johnny. Eu disse que eu não iria embora, porque já tinha pago o mês e só iria receber em alguns dias e ele nem mesmo era morador para dizer o que eu deveria fazer ou não. Nesse momento Marcos apareceu com a faca na mão e disse que não aguentava mais minha presença ali e que eu deveria ir embora, porque se eu não fosse embora ele faria uma besteira. Lu nesse momento pareceu uma pessoa sensata e tentou acalmar Marcos, mas algo ali não estava certo. Eu não sabia do que eles estavam falando e também não sabia o que estava acontecendo. Os outros moradores apareceram, inclusive o primeiro rapaz que me recebeu, de porte atlético. Ele tinha um sorriso irônico no rosto e parecia muito calmo com aquela situação absurda. Me chamou de lado e disse que era melhor eu ir embora naquele exato momento, antes que fosse tarde. Ele era do meu tamanho, até maior, e então colocou seu braço no meu pescoço e falou no meu ouvido que Marcos era psicótico e tinha acabado de surtar, estava completamente paranoico e que tinha algo contra mim. Isso não era problema meu, disse que não iria embora e resolvi voltar para o meu quarto, na esperança que isso tudo se resolvesse e todos se acalmassem. Chegando no meu quarto Johnny ainda estava lá. Agora de cueca. Falei pra ele que era melhor ele sair, que eu estava cansado e que Marcos estava realmente insano, que seria melhor evitar mais problemas. Johnny olhou pra mim, sem emoção alguma, fechou a porta e tentou me socar, disse que agora o quarto era dele e que eu já tinha "enchido o saco", tive que segurar ele, mas ele não parava e falava que ele ia me fazer aprender uma lição. Consegui segurar ele até ele se acalmar com um mata leão, mas ele era muito forte e me quebrou demais, eu disse que só ia solta-lo se ele saísse do meu quarto naquela mesma hora, fiz ele pedir pra soltar, mas se ele tivesse continuado com certeza me dominava porque eu já não tinha mais folego algum. Peguei a roupa dele, joguei pra ele se vestir e abri a porta. Ele saiu. Passado alguns instantes, escuto uma gritaria e depois passos se aproximando. Os três aparecem no meu quarto. Me ameaçaram e diziam que eu precisava ir embora antes que alguém fizesse uma besteira. Algo não estava certo ali e havia um cheiro muito forte de carniça. Pergunto do Bruno, o outro morador de porte atlético que parecia comigo. Eles parecem muito confusos e dizem que não sabem de quem eu estou falando. Lu tira a faca do bolso e dessa vez Marcos é quem tenta acalma-lo. Tinha algo em Lu que lembrava muito uma mulher. Ele me ameaça com a faca. Tem sangue na roupa de Lu. Marcos começa a rir e responde alguém, como se tivesse um ponto eletrônico no ouvido, como se falasse com um aparelho telefônico. Johnny entra de novo no meu quarto, segura meu rosto bem firme e fala bem devagar olhando fundo nos meus olhos: "Eu te amo. Vai embora. Você precisa ir embora". Lu solta uma risada e se corta na coxa. Marcos pega a faca e se corta no braço. Eu reparo que o Johnny também parecia frio. Acho melhor não discutir e faço uma das malas, nisso Lu fica cada vez mais descontrolado e bate na mesa do quarto. "Vai embora porra!". Johnny tira toda a roupa. Eu pego o celular, falo que vou chamar o uber e que estou indo embora sim. Já não me importava em ir embora, sem dinheiro, iria para qualquer lugar, até para um hotel, qualquer lugar mesmo. A bateria do meu celular estava 13% e descarregando. Há dias que está com um problema de bateria. Meu celular desliga. Johnny se aproxima de novo, agora completamente pelado, pega a minha mão e coloca em sua garganta, tem um corte ali, esse corte não existia. Eu enlouqueci? Tem sangue nas minhas roupas. Pego uma mochila, guardo algumas coisas pessoais e saio do meu quarto, olho para dentro para fechar a porta e vejo Johnny na minha cama ensanguentado, em cima dele está Lu, de calcinha, gritando com uma faca na mão, eu fecho a porta e me afasto, a porta não tem chave. O cachorro também não está muito certo, está caído, parece morto há vários dias, realmente apodrecido, ontem mesmo estava vivo. É por isso que fedia carniça. O cachorro fedia carniça. Vou andando rápido em direção à entrada, pelo longo corredor. Escuto a porta da casa dos fundos abrindo. Começo a correr. A porta da frente está trancada e minha chave da entrada ficou na mesa do quarto. Jogo a minha mala pelo muro e pulo o portão. Começo a correr. Continuo correndo. Todas as minhas coisas ficaram nessa casa. Minha roupa está limpa. Minha mão está limpa. Eu imaginei aquele sangue? Vou embora. Penso em falar com a polícia. Volto lá no dia seguinte sozinho. Não vou a polícia porque não vão acreditar em mim. Preciso pegar o resto de minhas malas. Quem atende é o Marcos. Diz que nunca me viu antes e fecha a porta. Até hoje não sei direito o que aconteceu naquela república, será que eu tive um surto psicótico?

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