terça-feira, 16 de junho de 2020

Se alguém chegar aqui pelo menos pode me entender um pouco

Não escrevo isso para ninguém exatamente, talvez para mim mesmo no futuro. Existe memórias, mas existem momentos de completo repúdio ao passado. Queria me lembrar mais de tudo o que era bonito e importante, mas é mais fácil perder tudo do que manter um arquivo realmente. As vezes encontro uma foto da minha avó quando ela ainda andava e quando ainda tinha consciência, mas hoje em dia está apenas sendo mantida viva porque mesmo que biologicamente não esteja pronta para morrer, de que adianta acordar poucos minutos e voltar a inanição do alzheimer? Quando falam do alzheimer é um pouco difícil de entender. Eu nunca entendi. Continuo sem entender. É muito difícil lidar com alguém que continua vivo, mas não existe mais. Vai se perdendo aos poucos. Uma hora para até de falar. É um processo tão gradual que você não percebe o tempo que perdeu. Um dia você se dá conta que não tem mais volta. É pior do que a morte, porque a morte é como se fosse o golpe final de uma série de mortes mais calmas. Ela tem 94 anos. Talvez 96... Não merecia morrer assim. Morreu agora em meio a pandemia. Dizem que morreu. Eu sou ateu, mas as vezes acho que talvez exista sim alguma força, algum Deus, a imagem é o que menos importa. Lembro de uma época que eu não tinha para onde ir, e uma das minhas namoradas quis se casar comigo, porque me amava, eu era a saída para todos os problemas dela, mas era tão assustador não ter controle nenhum para aquela situação. Eu gostava dela, do flerte inicial, de estar conhecendo alguém que eu poderia conversar, era até um alívio, mas eu não queria casar. Nem manter uma relação com mulher alguma. Não naquele momento. Pra piorar eu tinha certeza que ela estava possuída pelo capeta. Tive certeza. Não que ela não fosse uma pessoa legal ou interessante, mas acho que algo ali me fez alucinar ou escutar vozes. Lembro que rezei perguntando para mim mesmo ou para Deus, para a força invisível, se aquele era mesmo o caminho que eu deveria trilhar naquele momento, e intimamente eu sabia que não, porque não a amava eternamente, gostava sim, mas não era amor, não queria me casar, não queria a responsabilidade de uma relação séria jogada no meu colo, não queria depender de mulher nenhuma, mais uma vez, outra vez, mais uma de muitas vezes, mas a prova foi quando eu tive dúvidas de minha sanidade e escutei ela falar como o demônio, era uma outra voz, me respondia perguntas, debochava do que eu sabia até o momento. Foi o momento que eu decidi partir. Também não queria ser boneco sexual de ninguém. Fui embora, com o outro, o ex dela. Foi a mesma coisa ou pior. Foi pior. Hoje eu não acho que eu gostasse dele. Achei em algum momento, mas a sério não. O que faz de mim uma pessoa muito ruim, porque eu desprezava ele, no fundo achava um bosta. O que faz de mim um hipócrita. Eu não sei se ele chegou a gostar de mim, acho que era uma coisa de posse, ele me trazia para perto, mas na época eu estava sim envolvido com outras pessoas e posso ter sido sim uma pessoa muito ruim, do tipo de parecer gostar, mas sair com outro cara bem mais bonito ou ficar com alguma amiga e ignorar ele por semanas, e isso me faz hipocrita também, porque eu nao gosto de estar com mulheres, as vezes sinto falta de algumas e por outro lado prefiro homens, mas desprezo intimamente a todos, a unica vez que me apaixonei e quis me casar realmente com um homem, o mesmo fugiu de mim, assim como eu fugi daquela mulher que fez uma casinha pra mim e que por algum motivo eu sei que estava sim possuída pelo próprio deus do submundo, sobre o rapaz que eu fugi para escapar dele, não acho que o mesmo gostasse de mim, ele também nunca se importou, acho que eu poderia ter me poupado do tempo que perdi com ele. Não me acrescentou muitas coisas, por outro lado piorou minha auto-imagem, pela hipocrisia que foi ter que aguenta-lo. Aceitação é parte do processo, espero me construir melhor das próximas vezes. Voltando, sobre Deus, eu sou ateu, mas acho sim que talvez exista alguma coisa, as vezes acredito que existe algo, é difícil acreditar depois do nazismo, é difícil acreditar com nossas fábricas, com o nosso gosto por sangue animal, mas as vezes acontecem essas provas de que existe algo mais, por outro lado ver que uma pessoa que era boa, tranquila, calma, uma pessoa que já tinha sofrido tanto na vida acabar com alzheimer é um pouco cruel demais, ainda mais no meio de uma pandemia. 96 anos. Eu choro se eu vejo fotos com ela quando ela ainda andava e era consciente. Ela gostava de mim. Agora nem posso visita-la, por causa da doença mundial, desse vírus maldito. Para os médicos é hora de partir, mas por mim que ela se recuperasse mesmo, como um milagre, voltasse a andar, se lembrava de quem ela é, respondesse perguntas. Falam que acontecem milhares de milagres todos os dias, que os milagres são pequenos detalhes que não percebemos e com certeza, mas o milagre de ter conhecido aquela pessoa maravilhosa no passado não se compara a tragédia que é ver esse final e só lembrar de certos momentos ao encontrar uma foto perdida ao acaso. As lembranças morrem mais rápido do que as coisas. Eu pessoalmente não quero que a lembrança seja a última vez que a vi, antes disso tudo. Todos os anos antes de viajar eu sabia que talvez fosse a última vez que a encontraria em vida, mas não esperava uma situação em que ela ainda está viva, mas não posso visita-la, não posso encontrar com ela, e talvez dessa vez seja mesmo o final. Espero sim por Deus, existe essa esperança cega lá no fundo de que as coisas poderiam voltar a ser o que eram antes, mas sinceramente nem a casa se parece mais com a casa que existia na minha infância. A tsuki, a cachorrinha morreu de idade por esses tempos, praticamente durante o internamento da minha avó...  As coincidências precisam também serem cruéis? Eu não entendo porque essas mudanças exigem tantos sacrifícios. A minha última viagem me trouxe muitos ganhos emocionais, amadurecimento, por outro lado me custaram um ano perdido que poderia ter aproveitado ao lado da minha avó, mas em quais condições seria esse tempo? Melhor viver um ano longe, ignorando tudo, do que acompanhar uma pessoa definhar aos poucos. Isso é o Alzheimer. É bem cruel. Ela merecia lucidez e morrer um dia dormindo, não inconsciente com breves períodos de lucidez e lucidez essa que não existe mais controle sobre o próprio corpo. A psoríase, uma doença de pele que eu tenho, pele e articulação, ela aparece ou piora as vezes, é um pouco isso. Um dia meu dedo começou a doer muito, independente do remédio que eu tomasse. Hoje tenho dedos tortos. A articulação inflama, depois calcifica e pronto, alterou o formato das mãos, dos pés. É horrível. Acontece do nada, não existe controle algum. Hoje não sinto mais dor alguma nas articulações, mas toda vez que sinto alguma dor tenho medo de entortar ainda mais e acabar com as juntas travadas como daqueles idosos: eu ainda não sou idoso, mas ainda assim sofro com uma situação que não tenho controle algum. E é muito cruel não ter controle algum. Confiar cegamente. Um dedo da mão e dois dedos dos pés tiveram essa psoríase articular. Ficaram levemente tortos depois de semanas de dor intensa e inflamação interna. Não chega a ser como daqueles idosos que tiveram gota, mas é parecido. Muita gente não percebe esses detalhes, tem gente que acha que a vida é fácil para todos os outros, mas queria saber quantos aguentariam tudo o que passo ou já passei, por outro lado a vida é realmente um grande sofrimento para todos os que tem consciência e o progresso para a morte é o caminho de todos nós, por outro lado é assustador assistir o próprio corpo definhar, ano após ano.

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